Pela primeira vez em 17 anos o Brasil retrocede na luta contra o cigarro, enquanto no DF o número de fumantes oscila, mas a capital segue no topo dos rankings de uso de ‘vapes’, dispositivos eletrônicos que expõem o organismo à nicotina
Pela primeira vez desde 2007, o Brasil — historicamente reconhecido como referência mundial no combate ao tabagismo — registrou, em 2024, um aumento relativo de aproximadamente 25% no número de adultos fumantes.
Especialmente no Dia Nacional de Combate ao Fumo, o dado é motivo de alerta, o cenário ganha contornos ainda mais desafiadores quando se observa a expansão do uso dos cigarros eletrônicos, oficialmente classificados como Dispositivos Eletrônicos para Fumar (DEFs).
Apesar de terem a venda proibida no país desde 2009 por determinação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), 2,6% dos adultos das capitais brasileiras relataram uso diário ou ocasional desses dispositivos em 2024, ante 2,1% em 2023. Na avaliação do Ministério da Saúde, o crescimento, ainda que tímido, aponta para a consolidação de um hábito que se soma ao consumo de cigarros convencionais.
O impacto é sentido diariamente no sistema público de saúde. Estima-se que o tabagismo seja responsável por 477 mortes por dia no Brasil, o que corresponde a 174 mil óbitos evitáveis por ano. Entre as principais causas estão a Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC), doenças cardiovasculares, diversos tipos de câncer e o fumo passivo — este último, sozinho, responde por cerca de 20 mil mortes anuais.
Dados preliminares apresentados nesta pelo Ministério da Saúde, apontavam que a proporção de adultos que fumam cresceu de 9,3% para 11,6% em apenas um ano, o equivalente a 25,35 milhões de pessoas. Em contraste com a alta a nível nacional, no Distrito Federal, a prevalência do tabagismo tem oscilado ao longo dos últimos anos, num cenário de avanços e retrocessos.
Em 2006, 15,6% da população adulta da capital federal declarava fumar, índice que caiu de forma significativa até 2011, quando atingiu 10,3%. A surpresa, no entanto, fica para o uso de vapes na capital federal, que, conforme dados da Vigitel — que vão até 2023 — esteve na primeira posição no percentual de adultos que usa o dispositivo (5,7%).
Luta diária
Para além de estatísticas em um banco de dados, os números têm chamado a atenção não só de autoridades e dos especialistas, mas também da população. Estudante de medicina veterinária Giulia Cruxen, de 19 anos, contou que parou de usar cigarro eletrônico há cerca de um mês. “Quando parei, acabei recorrendo ao cigarro tradicional e ao tabaco para aliviar a abstinência. A terapia de reposição de nicotina ajuda bastante. Além disso, beber bastante água, mascar chicletes de sabor forte, praticar atividades físicas e evitar o convívio com pessoas que fumam foram atitudes que me ajudaram muito no processo”, contou.
Enquanto isso, outros ainda lutam contra o hábito. Aos 25 anos, o vigilante João Paulo Paiva fuma desde os 18. Hoje, ele busca reduzir o consumo, mas no passado, chegou a fumar quase uma carteira a cada dois dias, mas recentemente conseguiu baixar para apenas dois cigarros por dia. “Quando você fica sem fumar, o corpo sente, parece que está seco, você fica com sede, o estresse aumenta. Então, eu prefiro ir diminuindo aos poucos”, contou.
Apesar da determinação, ele nunca procurou ajuda especializada. O incentivo tem vindo principalmente da família. “Acho que o papel da família é muito importante nesse processo, porque não é só virar uma chave. É algo lento, difícil, e ter alguém por perto para apoiar faz diferença”, disse.
Saúde
Segundo o oncologista Márcio Almeida, tanto o cigarro comum quanto o eletrônico compartilham uma característica central: a exposição do organismo à nicotina. “Essa substância é altamente viciante e, quando combinada com uma série de compostos tóxicos presentes na fumaça, aumenta o risco de doenças cardiovasculares, problemas respiratórios, inflamações crônicas e ainda compromete o sistema imunológico”, afirma.
O especialista lembra que não existe forma de fumar que seja segura. “Produtos de tabaco aquecido, charutos e até o narguilé também apresentam riscos sérios. Uma sessão de narguilé, por exemplo, pode equivaler ao consumo de dezenas de cigarros, devido ao tempo prolongado de exposição à fumaça. Já os dispositivos de tabaco aquecido liberam nicotina e outras toxinas que favorecem tanto a dependência quanto o desenvolvimento de doenças”, alerta Almeida.
Ele destaca ainda que o maior desafio de quem decide parar de fumar está justamente no enfrentamento da dependência química. Por isso, segundo Almeida, o acompanhamento psicológico é fundamental no processo. “O apoio profissional ajuda a lidar com a ansiedade, a identificar gatilhos e a reforçar estratégias de mudança de comportamento. Quando associado a tratamento medicamentoso, as chances de sucesso aumentam de forma significativa”, diz o oncologista.
Ações
Para o médico e professor da Universidade de Brasília (UnB) Ricardo Martins, a estratégia mais eficaz para lidar com esse panorama deve combinar fiscalização e conscientização. “Concordo com as duas medidas: prevenção através de campanhas de conscientização, tal como é feita com o cigarro comercial, e fiscalização e punição para quem comercializa produtos ilegais usados para fumar”, defende.
O especialista chama a atenção para a rapidez com que a indústria do tabaco lança novos produtos, o que exige respostas mais ágeis do poder público. “Em princípio, os órgãos de fiscalização e as agências de regulação precisam trabalhar de maneira mais proativa com os setores de pesquisa e com as entidades médicas. O lançamento de qualquer produto ligado ao tabaco deve merecer um estudo aprofundado antes de ser liberado”, pontua.
Aline Mesquita, membro da Divisão de Controle do Tabagismo e Outros Fatores de Risco (Ditab) do Instituto Nacional de Câncer (Inca), lembra que o trabalho em rede foi fundamental para consolidar os avanços. “Medidas como a proibição da propaganda e do patrocínio de produtos derivados de tabaco, a inserção de advertências sanitárias com imagens nos maços, a proibição de fumar em ambientes fechados e a oferta gratuita de tratamento no SUS foram decisivas para reduzir a prevalência do tabagismo”, afirma Aline.
Para enfrentar essa nova epidemia silenciosa, o Inca tem ampliado ações de conscientização, produção de materiais educativos e capacitação de profissionais de saúde e educação. “Estamos trabalhando com escolas, unidades de saúde e meios de comunicação para desmistificar o consumo desses produtos. Nosso desafio é justamente expor esses riscos de forma clara para a população, em especial para adolescentes e jovens adultos”, completa.
Ajudas no Distrito Federal
Segundo a Secretaria de Saúde, o Programa de Controle do Tabagismo no DF promove ações educativas, de comunicação, de atenção à saúde, com ações legislativas e econômicas voltadas ao combate ao tabagismo. Além disso, estão disponíveis 70 Unidades de Saúde, distribuídas nas sete Regiões de Saúde do GDF, que oferecem tratamento individual ou em grupo, com quatro encontros semanais iniciais, acompanhado por médico e equipe de saúde. Confira a lista de estabelecimentos no QR Code.
Do Câncer à luta contra o vape
Aos 26 anos, Laura recebeu o diagnóstico de câncer de pulmão(foto: Reprodução)
Personagem da notícia
Laura Beatriz Nascimento,
publicitária e ex-fumante
Há alguns meses, minha vida mudou de uma forma que eu jamais poderia imaginar. Aos 26 anos, recebi um diagnóstico que, para muitas pessoas, parece distante: câncer de pulmão. Até então, eu acreditava que esse tipo de doença era algo que só acontecia com fumantes de longa data ou pessoas mais velhas.
A primeira vez que tive contato com a nicotina, eu tinha 14 anos e comecei como muita gente: pressão pra se sentir aceita no grupo de amigos. Quando fiz 18 anos, comecei a fumar com bastante frequência, mas depois de um ano, consegui diminuir o consumo, fumava apenas nos finais de semana, quando bebia.
Porém, em 2020, conheci os pods descartáveis e acabei me tornando 100% dependente, pensei que ele era menos prejudicial que o cigarro convencional. O marketing e a aparência moderna desses dispositivos mascaram uma realidade dura, contendo substâncias químicas e metais pesados que podem causar sérios danos à saúde.
No meu caso, os primeiros sinais vieram de forma silenciosa. Sentia a respiração pesada e tosse, mas não levei a sério. No início, ignorei. Porém, em dezembro de 2024, comecei a tossir bastante e sentir dor nas costas, e decidi procurar um hospital.
Depois dos exames, veio o choque: um nódulo no pulmão. O passo seguinte foi a biópsia, que confirmou que era maligno. Eu ficava me perguntando: “porque isso está acontecendo comigo?”. No começo não entendi, mas agora enxergo de uma maneira muito mais clara.
Meu tratamento começou com uma lobectomia, uma cirurgia para remover parte do pulmão. Felizmente, meus exames mostraram que não havia sinais de metástase. Não precisei de quimioterapia ou radioterapia, mas isso não significa que a minha jornada contra o câncer terminou. Ainda vou passar por acompanhamento médico pelos próximos cinco anos.
Essa experiência transformou minha visão sobre a vida e minha missão. Decidi compartilhar minha história para alertar outras pessoas, especialmente jovens, sobre os riscos reais do cigarro eletrônico. Não quero que ninguém passe pelo que passei para entender que saúde é coisa séria.
Hoje, além de cuidar da minha recuperação, uso as redes sociais para conscientizar. Recebo mensagens todos os dias de pessoas que estão tentando parar, e isso me dá forças para continuar falando sobre o assunto. Se a minha experiência puder ajudar pelo menos uma pessoa a repensar e abandonar o vape, já valeu a pena.
Minha mensagem final é simples: não espere um diagnóstico para cuidar de si. O prazer momentâneo não compensa o preço que sua saúde pode pagar. Respirar é um ato tão natural que só percebemos o valor quando a capacidade de fazê-lo é ameaçada.
Eu estou reconstruindo minha vida, um dia de cada vez. E, com cada respiração, reforço minha promessa de não me calar sobre os perigos do cigarro eletrônico. Porque informação salva vidas — e, talvez, a próxima vida salva seja a sua. (*Com informações do Correio Braziliense)